segunda-feira, 21 de maio de 2012

José Gil

Para a Aida

O que é que a criança faz quando se identifica com um pássaro ou com uma árvore? Imagina que é um pássaro e voa? Projecta-se na árvore? Falta qualquer coisa a estes verbos. Não dão conta da experiência em causa. Separam demasiado o menino e o pássaro, o menino e a árvore, como se tudo se limitasse a um jogo de faz de conta, imaginado por um terceiro. Algo de mais profundo se passa: uma transmissão de micro-partículas entre o menino e a árvore, entre o menino e o pássaro. Linhas de fuga. Um devir-pássaro e um devir-árvore. Porque quando brinca a ser pássaro, a criança voa!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Gelado

Na infância era costume passar o Verão na Beira-Baixa, em casa dos meus avós ou das minhas tias-avós. Na década de 1980, o comboio até à Covilhã demorava quase um dia inteiro. Numa dessas viagens de Agosto, acompanhado pelo meu irmão e pelas minhas tias-avós, lembro-me de o comboio fazer uma paragem mais prolongada, dando tempo aos passageiros para sair e comer qualquer coisa no bar da estação.
- Agora comem um gelado para se refrescarem - disse a minha tia.
E eu fiquei interiormente espantado, pois os meus pais nunca diriam aquelas palavras. Em casa um gelado era um luxo sem utilidade, que se tinha de pedir insistentemente, e apenas era concedido de forma espontânea em ocasiões especiais, em grande parte dependentes da arbitrariedade dos adultos. Um gelado «para refrescar» era uma coisa nunca antes vista. Fazia lembrar a história quase lendária de um miúdo da escola cujo médico lhe tinha recomendado a ingestão de gelados devido a um problema na garganta...